terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A sociologia de um mendigo e o espírito natalino

Transcrição do artigo escrito por Alcimar Antonio de Souza, apesar de descorda de alguns pontos de sua fala, o texto merece transcrição.

Alcimar Antônio de Souza

Faz algum tempo que li num blog postado a partir de Patu, precisamente numa semana em que o preconceito contra nordestinos havia se espalhado na internet, uma postagem intitulada “Matemática de mendigo”, em que o autor do artigo fazia uma comparação entre a vida de um pedinte e a de um estagiário.

Segundo o texto, o mendigo ganha em torno de dez centavos a cada troca de sinal de um semáforo, o que acontece, em média, a cada trinta segundos.

Feitos os cálculos, o texto conclui que o mendicante pode ganhar até R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais) por mês, assim considerada uma jornada de trabalho (leia-se, de mendicância) de oito horas por dia, num total de vinte e cinco dias por mês, em média.

O texto “Matemática de mendigo” ainda retrata um suposto depoimento de uma suposta pedinte, em que ela diz auferir, por mês, R$ 937,50 (novecentos e trinta e sete reais e cinquenta centavos) pedindo em menos de oito horas por dia.

O texto arremata: “Moral da história: É melhor ser mendigo do que estagiário”, acrescentando: “Estude a vida toda e peça esmolas; é mais fácil e melhor que arrumar emprego”.

O artigo ainda conclui: “Você pode acabar sendo governado por alguém que não estudou, não trabalhou, não sabe o próprio nome...”.

Passei um tempo enorme pensando se diria algo a respeito, ou não. Nesses dias, andando por Mossoró, com a festa do Natal se avizinhando, vi mendigos jogados numa rua, tais e quais animais irracionais entregues à própria sorte.

No noticiário da televisão, também desses dias recentes, vi assassinatos covardes de moradores de rua, e reprises e mais reprises de extermínios ocorridos no Brasil no ano de 2011, tendo como vítimas vários moradores de rua.

Como sou de sensibilidade à flor da pele, pensei, após muito relutar, em estabelecer um contraponto àquela postagem “Matemática de mendigo”. Não vou, porém, ater-me a números, pois sempre fui péssimo em Matemática, além de achar estranho que em meio a uma realidade social tão complexa seja tão fácil encontrar-se o valor tão exato de um “rendimento mensal” de um pedinte, como fez aquele texto.
Pois bem, ao contrário do que está no texto “Matemática de mendigo”, a mendicância está longe de ser uma atividade melhor que a de um estágio remunerado.

Até pouco tempo, os mendigos poderiam até mesmo ser presos, pois a mendicância era definida como contravenção penal (pequeno crime ou “crime anão”) pelo artigo 60 do Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Apenas com o advento da Lei nº 11.983, de 16 de julho de 2009, que revogou aquele artigo 60 da Lei das Contravenções Penais, foi que a mendicância deixou de ser definida como crime, para ser vista apenas como um problema social.

A Lei nº 11.983/2009, que aboliu do mundo jurídico pátrio o crime de mendicância, foi sancionada justamente pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que saiu do sertão de Pernambuco para trabalhar como metalúrgico em São Paulo, onde se tornou líder sindical, para daí ser deputado federal constituinte aprovado com nota 10 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e depois ser eleito pelo povo brasileiro para o posto máximo de Presidente da República.

Por outro lado, um esmoleiro pode até ganhar mensalmente aquele valor tão exato indicado no artigo-postagem “Matemática de mendigo”. No entanto, ele jamais terá respeitada a sua dignidade humana, pois a sociedade, imbuída dos propósitos consumistas e capitalistas, enxergando sempre valores materiais ao invés de valores humanos, sempre o verá como coisa, expurgo desprezível, e jamais como cidadão.

Para a sociedade materialista, um mendigo será sempre um lixo social, jamais um cidadão merecedor de respeito e qualquer solidariedade. Se lhe paga dez centavos a cada mudança de sinal num semáforo qualquer, não o faz por solidariedade humana, mas unicamente por um juízo de valor, que vê naquele pedinte um criminoso em potencial, e então o chamado homem social normal prefere agradá-lo, para não enfurecê-lo. Aliás, se todos os mendigos liberassem a fera humana que existe dentro de cada pessoa, os índices de violência seriam mais assustadores ainda.

Olhando ao mesmo tempo para um mendigo e para um estagiário, a sociedade logo cuidará de voltar as suas atenções para o estagiário, pois este, segundo avaliação social previsível, é alguém que tem uma expectativa de vida imensamente melhor que a do mendigo, que não tem expectativa nenhuma.

Para o corpo social, o estagiário no futuro será um grande profissional de determinada área da atividade humana, e com isso ganhará muito dinheiro. Já o mendigo, não passará dessa situação, e tende a se tornar ainda mais desprezível pela mesma sociedade que criou as condições de lhe excluir.

O estagiário tem uma carreira profissional a seguir; o pedinte, não! O estagiário trabalha num local seguro, confortável, de bom relacionamento social, e ao final do dia voltará para uma casa regular, com um mínimo de conforto. Já o mendigo, para “trabalhar”, enfrentará o sol escaldante ou a chuva impiedosa, e ao final do dia voltará para o lugar de onde nunca saiu: a rua.

As estatísticas não apontam assassinatos de estagiários por grupos de extermínio, graças a Deus. Mas estão repletas de mortes violentas de mendigos.

Vendo aquele texto, fiquei a me questionar sobre a área de atuação daquele estagiário. Pela precisão dos cálculos, certamente seria um estagiário de Matemática, pois dificilmente aqueles conceitos conservadores emanariam de um estagiário de Filosofia, História, Serviço Social ou Ciências Sociais, pois um destes teria visão diferenciada, menos fria e menos calculista, sobre uma realidade social tão profunda, como é a que envolve a pobreza, a mendicância, a violência das ruas...

Sinceramente, não é possível avaliar o ser humano por números imaginados com tanta precisão. Estudar o homem e o seu meio a partir de uma das quatro operações da Matemática não parece ser o mais exato, muito embora os números das estatísticas digam muito sobre a vida de um povo.

O texto “Matemática de mendigo” fez-me lembrar o protesto inteligente de Ivanildo Vila Nova e Bráulio Tavares no poema “Imagine o Brasil ser dividido / e o Nordeste ficar independente”, que ficou nacionalmente conhecido a partir da musicalidade que lhe foi dada por Elba Ramalho, nordestina que também enfrentou o preconceito mas conseguiu vencer na música justamente na região Sudeste do País, que tanto despreza o povo nordestino.

E, lembrando dos versos de Ivanildo e Bráulio, fiquei a pensar que aquele estagiário descrito no texto, se um dia resolver ingressar na atividade político-partidária, certamente engrossará as fileiras dos políticos conservadores de ultra-direita, que não vêem todos como pessoas, nem como gente.

Irá aquele estagiário compor a elite brasileira que não se conformou até hoje de ver chegar à Presidência da República um nordestino simples, que tem a cara e a voz do povo, e que justamente por isso implementou uma verdadeira revolução na distribuição da renda nacional, dando aos mais humildes uma considerável fatia daquele bolo econômico que por mais de quinhentos anos foi servido apenas aos de maior poder aquisitivo.
Aquele estagiário também deve ter se retorcido todo, de raiva, de ver que um nordestino-presidente, que anda longe de ser analfabeto, deixou o governo com a maior aprovação popular já obtida por um chefe de governo brasileiro.

Para aquele estagiário, protagonista do texto “Matemática de mendigo”, sugiro que, neste Natal, ao passar pelas ruas, veja com o coração e não com os olhos que enxergam cifrões, os seres humanos que, por razões diversas de um sistema excluidor, foram mandados para a via pública.

A Matemática deve ser utilizada para o aperfeiçoamento do conhecimento humano e nos grandes projetos que objetivem melhorar a vida do povo. Quem a criou, nos tempos da Grécia Antiga, certamente não teve em mente que ela serviria para uma injusta, incorreta e excluidora avaliação do ser humano.
Feliz Natal a todos, inclusive aos mendigos!

0 comentários:

Postar um comentário